Friday, December 24, 2004

poema no menino jesus

no meio dia de fim de primavera
eu tive um sonho como uma fotografia
eu vi jesus cristo descer à terra
ele veio pela encosta de um monte
mas era outra vez menino
a correr e a rolar-se pela erva
arrancar flores para deitar fora
e a rir de modo a ouvir-se longe
ele tinha fugido do céu
era nosso demais para fingir
de segunda pessoa da trindade
um dia que deus estava a durmir
e o espírito santo andava a voar
ele foi à caixa dos milagres e roubou três
com o primeiro ele fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido
com o segundo ele se criou eternamente humano e menino
e com terceiro ele criou o cristo eternamente na cruz
e o deixou-o pregado na cruz, q era o céu e serve de modelo às outras
depois ele fugiu para o sol e desceu pelo primeiro raio q apanhou.
hoje ele vive na minha aldeia comigo
é uma crianca bonita de riso natural
limpa o nariz com o braço direito
chapinha nas poças d'água
colhe as flores, gosta delas, esquece
atira pedra aos burros, colhe as frutas nos pomares
e foge a chorar e a gritar dos cães
só porque sabe que elas não gostam, que toda gente acha graça
ele corre atrás das raparigas que levam as bigas na cabeça
e levanta-lhes a saia.
a mim ele ensinou tudo
ele me ensinou a olhar para as coisas
ele me aponta todas as cores que há nas flores
e me mostra como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para elas
damos tão bem um com o outro na companhia de tudo
que nunca pensamos um no outro
vivemos juntos os dois como um acordo íntimo
como a mão direita e a esquerda
ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no degrau da porta de casa
graves, como convém a um deus e a um poeta
como se cada pedra fosse todo universo
e fosse por isso um perigo muito grande deixa-la cair no chão
depois eu lhe conto histórias das coisas só dos homens
e ele sorri, porque tudo é incrivel
ele ri dos reis, e dos que não são reis
e tem pena de ouvir falar das guerras e dos comércios
depois ele adormece
e eu o levo no colo para dentro da minha casa
deito-o na minha cama, despindo-o lentamente
como seguindo um ritual todo humano e todo materno
até ele estar nu
ele dorme dentro da minha alma
às vezes ele acorda de noite, brinca com meus sonhos
vira uns de pernas pro ar, põem uns por cima dos outros
e bate palmas sozinho
sorrindo para o meu sonho.
quando eu morrer filhinho,
seja eu a criança mais pequena
pega-me tu ao colo, e leva-me para tua casa
deita-me na tua cama
despe o meu ser, cansado e humano
conta me historias caso eu acorde, para tornar a adormecer
e da-me sonhos teus para eu brincar

fernando pessoa

usei fpessoa pq acho esse poema doce e humano e amoroso. ele é uma referência de vida, morte e amor. q, de alguma forma, se relaciona c a celebração pagã do equinócio, de agradecimento à terra pelos ciclos da vida.
pra quem, por ventura, chegar por aqui... bom natal!

1 comment:

Anonymous said...

Feliz Ano Novo!
É belo este poema de Pessoa.
Beijos,
Leda
http://www.ledacruz.blogger.com.br