Tuesday, November 21, 2006

'cotidiano', ou 'a pedido'

A mesa está posta para o café-da-manhã. Roberto senta-se. Veste terno e pantufas. Carrega o "Púcaro Búlgaro" nas mãos. Durante o trajeto do banheiro até a mesa, Laura o observara com um sorriso no rosto.

O sorriso dela é natural. Demais. Ele toma um gole de suco de laranja, pega o livro. Com licença. E volta para o banheiro. Puxa a tampa do vaso sanitário e senta-se. A toalha está no chão. Ele poderia usá-la mais uma ou duas vezes sem problema. Ela não comentou sobre o livro. Virou a cabeça de lado para ler o título e fez um arco com a sobrancelha. Será que conhece Campos de Carvalho?

Libertar o homem de sua existência utilitária. Subverter a razão e o bom gosto, a família, o trabalho e a honra. Bobagem. Quem quer ser libertado do quê? Será que ela pensa que existe algo além da realidade?

Levanta-se do vaso e olha pela janela. Tranca a porta e volta a sentar-se. Ela tinha um cheiro gostoso e estuda... psicologia, sociologia, matemática? A paisagem é confusa, edifícios, casas de residência, pátios internos com cachorros, crianças, varais, casas de comércio e letreiros, transeuntes e automóveis, ônibus e mulheres. Há quanto tempo estou aqui trancado? Será que ela ainda está aqui? Claro que sim.

Laura havia retirado a louça suja da mesa e fumava na sacada, com as pernas esticadas ao sol. Ele acha engraçado o ‘R’ bordado no roupão que ela usa. Poderia ser Roberto. Ela comenta algo sobre o sol, com o mesmo sorriso. Natural. Ele pede licença, precisa dar alguns telefonemas. Tudo bem? Tranqüilo.

Ele fecha a porta do quarto. Pega a carteira de Parliament na cômoda e risca o fósforo azul. Abre a janela e traga a noite. As manhãs são como tumores. Um risco inerente ao vício. Será que ela está na sacada? Claro que sim.

Eu preciso sair, minha reunião foi antecipada. Ela se ajeita na cadeira. O que quer que eu faça? Espero aqui, ou volto mais tarde? Ele sente-se um idiota. Pode ir. Está bem assim. Ela ergue uma das sobrancelhas. E a grana? Vai querer a metade de volta? Ele dá de ombros. Tudo bem. Eu já lhe disse, está bem assim.

(*) mote: francis rigotto [não, não tem parentesco. aparente, ao menos.]
(**)a pedido da alessandra, ma chère ami.

1 comment:

André said...

bela passagem... parece que abri um livro numa página aleatória e deu vontade de continuar a ler.